“Não importa o que fizeram
com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram de você.” (Sartre)
Por
Clarisse Mendes e Marília Jardim
Sartre foi muito feliz ao escrever essa
frase. No nosso cotidiano podemos ver várias pessoas que seguem a essência que
essa frase reflete. Há certos momentos da nossa vida onde nos deparamos com
perdas e dificuldades das mais diversas formas e em princípio muitas pessoas
acreditam terem perdido o sentido da vida, e não importa o quão grande seja o
nosso esforço, não depende de nós alterarmos tal acontecimento. Cada um de nós
irá lidar com a situação de uma forma. Alguns utilizam o acontecimento para se
tornarem pessoas ainda melhores e servirem de exemplo para outras de como é
possível dar continuidade a vida mesmo com alguma restrição. Outros utilizam
das dificuldades para se revoltarem contra a vida. Um exemplo de situação que pode desencadear os
mais diversos sentimentos e reações é quando o sujeito desenvolve uma
deficiência. Para muitos a vida parece se tornar incapacitante, para outros
representa um recomeço de modo diferente.
Falando em deficiência e superação,
resolvemos contar pra vocês um pouco da vivência de Pedro Russo. Um jovem que
com 23 anos, estudante de medicina e cheio de planos para o futuro, viu um
tumor cerebral mudar sua vida completamente ao se tornar deficiente visual. Mas
não pense que o jovem Pedro abandonou seus planos por causa disso. Hoje ele é
médico, residente de psiquiatria (isso mudou um pouco porque na graduação ele
desejava ser ortopedista), estuda, trabalha, luta jiu-jitsu, namora, tem muitos
amigos e continua sua vida social como antes da perda da visão.
Na entrevista abaixo podemos ver um pouco de
como tudo aconteceu e como ele lida com a situação.
Confira!
1. Fale um pouco sobre você:
Meu nome completo é Pedro Cerqueira Russo. Eu tenho 27
anos. Moro em Jaboatão dos Guararapes, com meus pais e minhas duas
irmãs. Eu sou médico. Trabalho e faço residência médica em psiquiatria pela
Prefeitura da cidade do Recife. Eu estudo geralmente pelo computador num programa
que é mais falado, ele lê tudo que eu passo a seta por cima. O nome do programa
é JAWS* e é um programa pra realmente quem é deficiente visual.
2. Fale um pouco sobre a sua deficiência:
Sobre a minha deficiência, eu tenho baixa visão,
decorrente de um tumor cerebral. Não foi por conta do tumor diretamente, foi
por conta de uma hipertensão intracraniana que esse tumor ocasionou. E aí
depois da cirurgia sai normal e uma semana depois fui perdendo a visão
rapidamente. Em relação a quanto tempo eu não decoro direito, mas eu vou fazer
quatro anos dessa deficiência em outubro. Eu comecei no início, antes de operar,
tendo uns apagões na visão. Não comecei da forma clássica que seria dor de
cabeça e tal. Eu tinha apagões na visão e aí procurei o médico e foi visto essa
questão do tumor.
3.
Você
disse que tem baixa visão, então não tem a cegueira total. Pelo que você disse
ainda consegue escrever, mesmo que com alguma dificuldade. Qual o grau que você
ainda consegue enxergar?
É estranho o que eu vejo. Eu consigo enxergar tudo,
quando eu foco num certo instrumento, um objeto que eu quero, eu consigo ver o
objeto todo. Não vejo vulto, vejo a imagem da pessoa, mas vejo borrado. Vejo
cores. E quando eu vou escrever, eu tenho que escrever cheirando o papel, e ler
a mesma coisa, se eu for ler alguma coisa. É mais ou menos isso assim. Eu vejo
a imagem da pessoa normal, mas o rosto todo embaçado, eu não sei que é você. Eu
consigo sim preencher os prontuários onde eu trabalho, de como se eu fosse uma
pessoa normal, porque eu me adaptei, mas se eu não tivesse me adaptado, não
tivesse ninguém que chegasse pra mim e falasse ‘aqui é tal coisa, aqui é o nome
do paciente, aqui é a prescrição do paciente’, eu não saberia. Preencho porque
uma pessoa previamente já tinha me dito isso.
4.
Quais
as maiores diferenças na sua vida que você percebe do antes e depois da
deficiência?
Acho que muita coisa mudou na minha vida depois dessa
deficiência. Em relação aos amigos eu sinceramente não percebi muita coisa não,
até porque eu nunca tive nenhum problema em relação a amizade. Nenhum amigo meu
se afastou de mim por conta dessa deficiência. Até porque eu vou pra todos os
lugares, nunca deixei de ir pra nada. Acho que minha namorada também me ajuda
muito nesse sentido. Ela me acompanha muito em tudo, então nunca tive nenhum
problema em relação a ir pra algum lugar ou deixar de ir pra algum lugar por
conta disso. E minha família era menos preocupada, não me procurava tanto, hoje
em dia ela já liga pra caramba, fica mais preocupada de tal e eu entendo. Minha
mãe principalmente. Minha vida mudou, meu estudo também. Eu era mais
independente e hoje em dia eu preciso de alguns recursos pra estudar. Hoje em
questões de estudo algumas coisas eu não consigo estudar por conta que é com
folha e tal, mas aí eu peço pra uma pessoa digitalizar pra mim e aí,
sinceramente, eu não vejo dificuldade. Obstáculo vai ter com certeza,
dificuldade tenho muito mais do que qualquer pessoa, mas quando a pessoa vai
atrás, se eu for atrás realmente daquele livro, daquele assunto pra estudar eu
vou atrás e consigo. Claro que com uma velocidade menor do que uma pessoa
normal, entendeu? Minha vida mudou, mudou muito. Mudou muito pra mim.
5.
Você
sofreu ou sofre algum tipo de discriminação?
Bom... eu acho que nunca é igual, né? Por mais que você tente disfarçar e tudo. A princípio quando a
pessoa me vê assim de longe não consegue notar que eu sou deficiente visual, eu
acho. Mas quando fica prestando atenção nas minhas atitudes, no meu
comportamento, fala assim: ‘rapaz, esse bicho tem alguma coisa estranha, mas
não sei o que é!’. Por parte da pessoa nunca senti nenhum tipo de discriminação
não. Por parte de trabalho e tal as pessoas a princípio ficam desconfiadas. Então
eu tenho que demonstrar minhas qualidades e provar que essa deficiência não vai
influenciar em nada no nosso tratamento ou em alguma coisa que iria causar
algum malefício.
6.
Para
você estudar, quais as dificuldades que você encontra e quais recursos que você
utiliza?
Estou fazendo a minha residência. Atualmente sou R2,
segundo ano de residência. No estudo muita coisa tem na internet, então eu
sinceramente não tenho tanta dificuldade assim. Porque como eu falei
anteriormente, eu estudo tudo pelo computador. A minha dificuldade é achar essas
coisas na internet. Eu tenho dificuldade pra achar, procurar, pesquisar na
internet, porque eu ainda não me acostumei com o programa. Mas quando acham e
me mandam eu não tenho dificuldade. Porque assim, o estudo é só eu estudo,
agora em vez de ler eu escuto. Mas quando só tem livros eu tenho que mandar pra
uma pessoa e essa pessoa digitaliza a página pra mim, bota em PDF ou Word, pra
eu poder ler. É uma mão de obra maior e preciso de mais tempo. Tenho
(dificuldades), mas eu consigo driblar com isso aí, minimizar as perdas. Mas é
difícil, não vou dizer que é fácil não.
7.
No
meio social quais são as maiores barreiras (físicas e atitudinais)?
Das barreiras físicas eu tenho muito que falar, no
sentido de calçadas, estrutura, acessibilidade que aqui no Recife é
praticamente zero. É muito ruim. Eu tenho baixa visão e já sofro, imagine pra quem
é cego total. Em relação às barreiras sociais eu pensava que iria ser muito
mais discriminado, mas eu vejo que hoje em dia aqui, pelo menos aqui em Recife
ainda tem muita gente boa. Porque tem muita gente que quer fazer o bem, que é
atencioso e eu não tinha essa ideia. Eu pensava que ia ser muito discriminado e
muita gente não iria me ajudar. Mas pelo que eu tô vendo eu sou muito bem acolhido nos lugares. As pessoas se
preocupam realmente com quem é deficiente, apesar de eu não parecer, quando eu
falo, o tratamento é outro. Porque as pessoas, não sei, tem pena ou... Já sofri
algumas coisas, algumas atitudes porque não pensavam que eu era deficiente
visual e que eu tava brincando. Por que ele falou ‘como é que tu, deficiente
visual, e tá olhando diretamente pra mim?’. Aí não acreditavam, (dizia) ‘deixe
de tua onda, que tu não é cego’. Mas eu tiro isso muito de boa, não tenho
nenhum problema em relação a isso não. Na vida profissional é mais complicado,
porque quem tá contratando quer realmente ter a garantia de que eu realmente
sou bom, fica querendo ou não perguntando mais do que o normal. Tipo: ‘será que
ele é bom mesmo?’, aí fica perguntando as pessoas que são atendidas por mim, ou
então fica perguntando a outros profissionais se eu sou bom mesmo e como é, aquela
ansiedade. Em relação as instituições que eu trabalho, realmente nenhuma é
preparadas, nenhuma tem acessibilidade pra o deficiente visual e nem para
deficiente físico de uma maneira geral. Isso é triste, mas é a realidade daqui,
do Brasil, não só de Pernambuco. Eu fiz o seguinte, ou eu me adequo ou então eu
saio. A instituição é muito difícil de adequar a mim, então eu acabei me
adequando aquelas instituições. Aqueles papéis para preencher, formulários,
protocolos daquela instituição, eu decorei tudinho e aí hoje em dia nas
instituições que eu trabalho eu já sei tudo decorado. Então eu não tenho
problema em relação a isso não. Mas foi difícil pra mim, seria muito mais fácil
se o serviço se adaptasse a mim. Mas como a gente sabe que a realidade daqui é
outra, eu me adaptei ao serviço.
8.
Sobre
a dificuldade no acesso das pessoas com deficiência na área de saúde e você
sendo um profissional da saúde. Qual a sua vivência nesse setor e o que você
pensa sobre isso?
Eu sinceramente não tive nenhum problema em relação a
médico. Eu não sei se é porque eu tenho plano de saúde e o tratamento no serviço
particular é diferenciado, mas eu não senti nenhuma discriminação por parte dos
médicos. Não sei se é porque é companheiro, mas eu não senti uma discriminação.
Por parte dos psicólogos acho que quem tem uma dificuldade maior são os
deficientes auditivos, porque tem que se comunicar por libras. Realmente os
médicos de uma maneira geral não tem essa qualificação de se comunicar por
libras. E a respeito da psicologia eu não tive problema em relação a conversar
com alguns deles. Hoje em dia não faço terapia por conta da carga horária da
faculdade, da residência, infelizmente, mas quando fazia antes de entrar na
residência eu nunca tive nenhum problema. Agora como profissional de saúde eu tento
fazer a maior acessibilidade do público deficiente, mas sei que é difícil. Eu
até tenho uma empatia melhor quando a pessoa é deficiente também. Quando surge
uma oportunidade até falo que também sou deficiente, pra criar uma empatia
melhor com o paciente e tal. Ele vê que não é só ele que é deficiente, que o
médico dele também é deficiente e pode, porque ele não pode?!
9.
Você
falou que fazia terapia. Você começou essa terapia após perder a visão?
Antes de perder a visão eu não era tão assim tão
compreensivo. Eu mudei bastante, minha personalidade, meu jeito de ser mudou
bastante depois dessa deficiência. Depois da deficiência eu mudei muito o meu
jeito de ser e meu jeito de ver a vida. E aí todo mundo falava ‘rapaz, faça
terapia’ e eu ainda era muito resistente a fazer terapia, como a maioria das
pessoas ainda ignorantes são ainda resistentes. E eu era muito resistente, eu
só fiz depois desse problema. Sou muito feliz por ter feito. Não faço mais
porque tô numa rotina muito pesada.
10. Quais são suas perspectivas para o
mercado de trabalho?
Acho que hoje em dia como qualquer outro profissional eu
penso em ser concursado, ter algum concurso público, pra ter certa estabilidade
financeira, ter certa segurança. Porém, eu não fecho a possibilidade também de
ensinar, ser preceptor em alguma residência médica de psiquiatria. E quero
também ter meu consultório. Trabalho na parte de álcool e drogas hoje em dia.
Pretendo fazer alguma especialização em álcool e drogas e trabalhar com isso no
futuro. Converso muito com outro psiquiatra, que também é deficiente visual, o
nome dele é Gustavo Arribas, e ele me orienta muito nesse sentido e a gente
conversa bastante. Acho que no meu futuro eu vou mais colar nesse cara (risos).
As perspectivas para o futuro são boas. Acho que as pessoas a princípio ficam
com medo, como eu falei, mas ninguém percebe que eu sou deficiente visual. Só
percebe que eu sou deficiente visual no final da consulta quando eu vou
prescrever alguma medicação que aí eu praticamente cheiro a página, cheiro o
papel, escrevo bem pertinho. Mas a letra sai correta. Aí no final é que falam
‘doutor, o senhor não enxerga direito não?’, aí eu ‘é, eu tenho problema de
visão’. Não fico expondo muito minha deficiência, mas quando perguntam eu falo.
Pra o futuro como uma pessoa normal eu vou querer crescer na minha carreira. Quero
fazer consultório e concurso público. Só não sei na questão do trabalho como
vai ser. Ainda não sei como vai ser a aceitação no concurso, mas eu acho que
não terei grandes problemas porque até hoje sempre me adaptei bem aos serviços.
Claro que preciso de um tempo pra ver a papelada, pra decorar algumas coisas.
Como sempre o serviço nunca se adequa a mim, eu que tenho que me adaptar ao
serviço. Eu vou demorar um pouco a mais, alguns dias pra me adaptar, mas depois
da adaptação acho que vai ser tipo vida normal entre aspas. Preciso de um apoio
maior do que outro médico, uma técnica, alguma coisa um pouco mais próxima a
mim. Mas tirando isso eu acho que não vou ter grandes dificuldades não.
11. Você aprendeu braile?
Eu já falei com vários deficientes visuais. Uns falam ‘é
arretado o braile, aprenda!’, agora outros falam ‘eu já aprendi braile, já
desaprendi umas dez vezes’. Eu já tenho meu computador e hoje em dia tudo é
feito pelo computador. E, sinceramente, não tenho nenhum interesse em aprender
braile. Porque hoje tudo é no computador, tudo é digital. Tudo o que eu quiser
escrever eu consigo escrever realmente. E o que eu quero ler, eu não preciso
ler em braile, eu boto no computador que é muito mais fácil. Hoje em dia também
minha rotina é muito corrida e eu não tenho tempo pra parar e aprender braile.
Também se eu tivesse tempo eu não sei se eu aprenderia. Acho que aprenderia
mais como um plus pra minha vida.
12. Quando perdeu a visão teve algum tipo de
resignação, revolta? Qual foi sua reação?
Falando um pouco da parte médica, eu tive um papiledema,
é como se fosse um inchaço dentro do olho. E aí a maioria dos médicos falava
‘Pedro, tu tá assim porque tu tá com papiledema, quando o papiledema ceder, ou
seja, quando desinchar, tu vai voltar a ver normal’. Então eu sempre tive essa
esperança. E quando chegou um médico e falou ‘vai ser assim pra o resto da
vida’, eu acho que dentro de mim eu já sabia que ia ser assim, mas eu sempre
tinha uma esperança de que ia voltar (a enxergar). Quando chegou esse dia eu
mais ou menos que já sabia que não ia melhorar. Foi um pouco de baque pra mim, mas
no fundo eu acho que já sabia.
13. Comentários finais:

*JAWS (Job Access With Speech) é um "screen reader”, um programa de computador para usuários com deficiência visual. Esse software é composto por um sistema que lê as informações dispostas na tela e por um sintetizador de voz para reconhecer comandos executados pelo usuário. Com o auxilio deste software, pessoas com deficiência visual podem usufruir dos recursos de informática e navegação na internet com mais facilidade e sem auxilio de terceiros. O software conta com diversos atalhos de teclado para facilitar a navegação do usuário. Também pode ser usado com um hardware de linhas de braile, para substituir a leitura de tela.
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