quinta-feira, 18 de junho de 2015

O médico é cego: E pode???

“Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram de você.” (Sartre)

Por Clarisse Mendes e Marília Jardim


Sartre foi muito feliz ao escrever essa frase. No nosso cotidiano podemos ver várias pessoas que seguem a essência que essa frase reflete. Há certos momentos da nossa vida onde nos deparamos com perdas e dificuldades das mais diversas formas e em princípio muitas pessoas acreditam terem perdido o sentido da vida, e não importa o quão grande seja o nosso esforço, não depende de nós alterarmos tal acontecimento. Cada um de nós irá lidar com a situação de uma forma. Alguns utilizam o acontecimento para se tornarem pessoas ainda melhores e servirem de exemplo para outras de como é possível dar continuidade a vida mesmo com alguma restrição. Outros utilizam das dificuldades para se revoltarem contra a vida.  Um exemplo de situação que pode desencadear os mais diversos sentimentos e reações é quando o sujeito desenvolve uma deficiência. Para muitos a vida parece se tornar incapacitante, para outros representa um recomeço de modo diferente.

Falando em deficiência e superação, resolvemos contar pra vocês um pouco da vivência de Pedro Russo. Um jovem que com 23 anos, estudante de medicina e cheio de planos para o futuro, viu um tumor cerebral mudar sua vida completamente ao se tornar deficiente visual. Mas não pense que o jovem Pedro abandonou seus planos por causa disso. Hoje ele é médico, residente de psiquiatria (isso mudou um pouco porque na graduação ele desejava ser ortopedista), estuda, trabalha, luta jiu-jitsu, namora, tem muitos amigos e continua sua vida social como antes da perda da visão.
Na entrevista abaixo podemos ver um pouco de como tudo aconteceu e como ele lida com a situação.

Confira!

1.     Fale um pouco sobre você:
Meu nome completo é Pedro Cerqueira Russo. Eu tenho 27 anos. Moro em Jaboatão dos Guararapes, com meus pais e minhas duas irmãs. Eu sou médico. Trabalho e faço residência médica em psiquiatria pela Prefeitura da cidade do Recife. Eu estudo geralmente pelo computador num programa que é mais falado, ele lê tudo que eu passo a seta por cima. O nome do programa é JAWS* e é um programa pra realmente quem é deficiente visual.

2.     Fale um pouco sobre a sua deficiência:
Sobre a minha deficiência, eu tenho baixa visão, decorrente de um tumor cerebral. Não foi por conta do tumor diretamente, foi por conta de uma hipertensão intracraniana que esse tumor ocasionou. E aí depois da cirurgia sai normal e uma semana depois fui perdendo a visão rapidamente. Em relação a quanto tempo eu não decoro direito, mas eu vou fazer quatro anos dessa deficiência em outubro. Eu comecei no início, antes de operar, tendo uns apagões na visão. Não comecei da forma clássica que seria dor de cabeça e tal. Eu tinha apagões na visão e aí procurei o médico e foi visto essa questão do tumor.

3.     Você disse que tem baixa visão, então não tem a cegueira total. Pelo que você disse ainda consegue escrever, mesmo que com alguma dificuldade. Qual o grau que você ainda consegue enxergar?
É estranho o que eu vejo. Eu consigo enxergar tudo, quando eu foco num certo instrumento, um objeto que eu quero, eu consigo ver o objeto todo. Não vejo vulto, vejo a imagem da pessoa, mas vejo borrado. Vejo cores. E quando eu vou escrever, eu tenho que escrever cheirando o papel, e ler a mesma coisa, se eu for ler alguma coisa. É mais ou menos isso assim. Eu vejo a imagem da pessoa normal, mas o rosto todo embaçado, eu não sei que é você. Eu consigo sim preencher os prontuários onde eu trabalho, de como se eu fosse uma pessoa normal, porque eu me adaptei, mas se eu não tivesse me adaptado, não tivesse ninguém que chegasse pra mim e falasse ‘aqui é tal coisa, aqui é o nome do paciente, aqui é a prescrição do paciente’, eu não saberia. Preencho porque uma pessoa previamente já tinha me dito isso.

4.     Quais as maiores diferenças na sua vida que você percebe do antes e depois da deficiência?
Acho que muita coisa mudou na minha vida depois dessa deficiência. Em relação aos amigos eu sinceramente não percebi muita coisa não, até porque eu nunca tive nenhum problema em relação a amizade. Nenhum amigo meu se afastou de mim por conta dessa deficiência. Até porque eu vou pra todos os lugares, nunca deixei de ir pra nada. Acho que minha namorada também me ajuda muito nesse sentido. Ela me acompanha muito em tudo, então nunca tive nenhum problema em relação a ir pra algum lugar ou deixar de ir pra algum lugar por conta disso. E minha família era menos preocupada, não me procurava tanto, hoje em dia ela já liga pra caramba, fica mais preocupada de tal e eu entendo. Minha mãe principalmente. Minha vida mudou, meu estudo também. Eu era mais independente e hoje em dia eu preciso de alguns recursos pra estudar. Hoje em questões de estudo algumas coisas eu não consigo estudar por conta que é com folha e tal, mas aí eu peço pra uma pessoa digitalizar pra mim e aí, sinceramente, eu não vejo dificuldade. Obstáculo vai ter com certeza, dificuldade tenho muito mais do que qualquer pessoa, mas quando a pessoa vai atrás, se eu for atrás realmente daquele livro, daquele assunto pra estudar eu vou atrás e consigo. Claro que com uma velocidade menor do que uma pessoa normal, entendeu? Minha vida mudou, mudou muito. Mudou muito pra mim.

5.     Você sofreu ou sofre algum tipo de discriminação?
Bom... eu acho que nunca é igual, ? Por mais que você tente disfarçar e tudo. A princípio quando a pessoa me vê assim de longe não consegue notar que eu sou deficiente visual, eu acho. Mas quando fica prestando atenção nas minhas atitudes, no meu comportamento, fala assim: ‘rapaz, esse bicho tem alguma coisa estranha, mas não sei o que é!’. Por parte da pessoa nunca senti nenhum tipo de discriminação não. Por parte de trabalho e tal as pessoas a princípio ficam desconfiadas. Então eu tenho que demonstrar minhas qualidades e provar que essa deficiência não vai influenciar em nada no nosso tratamento ou em alguma coisa que iria causar algum malefício.

6.     Para você estudar, quais as dificuldades que você encontra e quais recursos que você utiliza?
Estou fazendo a minha residência. Atualmente sou R2, segundo ano de residência. No estudo muita coisa tem na internet, então eu sinceramente não tenho tanta dificuldade assim. Porque como eu falei anteriormente, eu estudo tudo pelo computador. A minha dificuldade é achar essas coisas na internet. Eu tenho dificuldade pra achar, procurar, pesquisar na internet, porque eu ainda não me acostumei com o programa. Mas quando acham e me mandam eu não tenho dificuldade. Porque assim, o estudo é só eu estudo, agora em vez de ler eu escuto. Mas quando só tem livros eu tenho que mandar pra uma pessoa e essa pessoa digitaliza a página pra mim, bota em PDF ou Word, pra eu poder ler. É uma mão de obra maior e preciso de mais tempo. Tenho (dificuldades), mas eu consigo driblar com isso aí, minimizar as perdas. Mas é difícil, não vou dizer que é fácil não.

7.     No meio social quais são as maiores barreiras (físicas e atitudinais)?
Das barreiras físicas eu tenho muito que falar, no sentido de calçadas, estrutura, acessibilidade que aqui no Recife é praticamente zero. É muito ruim. Eu tenho baixa visão e já sofro, imagine pra quem é cego total. Em relação às barreiras sociais eu pensava que iria ser muito mais discriminado, mas eu vejo que hoje em dia aqui, pelo menos aqui em Recife ainda tem muita gente boa. Porque tem muita gente que quer fazer o bem, que é atencioso e eu não tinha essa ideia. Eu pensava que ia ser muito discriminado e muita gente não iria me ajudar. Mas pelo que eu vendo eu sou muito bem acolhido nos lugares. As pessoas se preocupam realmente com quem é deficiente, apesar de eu não parecer, quando eu falo, o tratamento é outro. Porque as pessoas, não sei, tem pena ou... Já sofri algumas coisas, algumas atitudes porque não pensavam que eu era deficiente visual e que eu tava brincando. Por que ele falou ‘como é que tu, deficiente visual, e tá olhando diretamente pra mim?’. Aí não acreditavam, (dizia) ‘deixe de tua onda, que tu não é cego’. Mas eu tiro isso muito de boa, não tenho nenhum problema em relação a isso não. Na vida profissional é mais complicado, porque quem tá contratando quer realmente ter a garantia de que eu realmente sou bom, fica querendo ou não perguntando mais do que o normal. Tipo: ‘será que ele é bom mesmo?’, aí fica perguntando as pessoas que são atendidas por mim, ou então fica perguntando a outros profissionais se eu sou bom mesmo e como é, aquela ansiedade. Em relação as instituições que eu trabalho, realmente nenhuma é preparadas, nenhuma tem acessibilidade pra o deficiente visual e nem para deficiente físico de uma maneira geral. Isso é triste, mas é a realidade daqui, do Brasil, não só de Pernambuco. Eu fiz o seguinte, ou eu me adequo ou então eu saio. A instituição é muito difícil de adequar a mim, então eu acabei me adequando aquelas instituições. Aqueles papéis para preencher, formulários, protocolos daquela instituição, eu decorei tudinho e aí hoje em dia nas instituições que eu trabalho eu já sei tudo decorado. Então eu não tenho problema em relação a isso não. Mas foi difícil pra mim, seria muito mais fácil se o serviço se adaptasse a mim. Mas como a gente sabe que a realidade daqui é outra, eu me adaptei ao serviço.

 


8.     Sobre a dificuldade no acesso das pessoas com deficiência na área de saúde e você sendo um profissional da saúde. Qual a sua vivência nesse setor e o que você pensa sobre isso?
Eu sinceramente não tive nenhum problema em relação a médico. Eu não sei se é porque eu tenho plano de saúde e o tratamento no serviço particular é diferenciado, mas eu não senti nenhuma discriminação por parte dos médicos. Não sei se é porque é companheiro, mas eu não senti uma discriminação. Por parte dos psicólogos acho que quem tem uma dificuldade maior são os deficientes auditivos, porque tem que se comunicar por libras. Realmente os médicos de uma maneira geral não tem essa qualificação de se comunicar por libras. E a respeito da psicologia eu não tive problema em relação a conversar com alguns deles. Hoje em dia não faço terapia por conta da carga horária da faculdade, da residência, infelizmente, mas quando fazia antes de entrar na residência eu nunca tive nenhum problema. Agora como profissional de saúde eu tento fazer a maior acessibilidade do público deficiente, mas sei que é difícil. Eu até tenho uma empatia melhor quando a pessoa é deficiente também. Quando surge uma oportunidade até falo que também sou deficiente, pra criar uma empatia melhor com o paciente e tal. Ele vê que não é só ele que é deficiente, que o médico dele também é deficiente e pode, porque ele não pode?!

9.     Você falou que fazia terapia. Você começou essa terapia após perder a visão?
Antes de perder a visão eu não era tão assim tão compreensivo. Eu mudei bastante, minha personalidade, meu jeito de ser mudou bastante depois dessa deficiência. Depois da deficiência eu mudei muito o meu jeito de ser e meu jeito de ver a vida. E aí todo mundo falava ‘rapaz, faça terapia’ e eu ainda era muito resistente a fazer terapia, como a maioria das pessoas ainda ignorantes são ainda resistentes. E eu era muito resistente, eu só fiz depois desse problema. Sou muito feliz por ter feito. Não faço mais porque numa rotina muito pesada.

10.  Quais são suas perspectivas para o mercado de trabalho?
Acho que hoje em dia como qualquer outro profissional eu penso em ser concursado, ter algum concurso público, pra ter certa estabilidade financeira, ter certa segurança. Porém, eu não fecho a possibilidade também de ensinar, ser preceptor em alguma residência médica de psiquiatria. E quero também ter meu consultório. Trabalho na parte de álcool e drogas hoje em dia. Pretendo fazer alguma especialização em álcool e drogas e trabalhar com isso no futuro. Converso muito com outro psiquiatra, que também é deficiente visual, o nome dele é Gustavo Arribas, e ele me orienta muito nesse sentido e a gente conversa bastante. Acho que no meu futuro eu vou mais colar nesse cara (risos). As perspectivas para o futuro são boas. Acho que as pessoas a princípio ficam com medo, como eu falei, mas ninguém percebe que eu sou deficiente visual. Só percebe que eu sou deficiente visual no final da consulta quando eu vou prescrever alguma medicação que aí eu praticamente cheiro a página, cheiro o papel, escrevo bem pertinho. Mas a letra sai correta. Aí no final é que falam ‘doutor, o senhor não enxerga direito não?’, aí eu ‘é, eu tenho problema de visão’. Não fico expondo muito minha deficiência, mas quando perguntam eu falo. Pra o futuro como uma pessoa normal eu vou querer crescer na minha carreira. Quero fazer consultório e concurso público. Só não sei na questão do trabalho como vai ser. Ainda não sei como vai ser a aceitação no concurso, mas eu acho que não terei grandes problemas porque até hoje sempre me adaptei bem aos serviços. Claro que preciso de um tempo pra ver a papelada, pra decorar algumas coisas. Como sempre o serviço nunca se adequa a mim, eu que tenho que me adaptar ao serviço. Eu vou demorar um pouco a mais, alguns dias pra me adaptar, mas depois da adaptação acho que vai ser tipo vida normal entre aspas. Preciso de um apoio maior do que outro médico, uma técnica, alguma coisa um pouco mais próxima a mim. Mas tirando isso eu acho que não vou ter grandes dificuldades não.

11.  Você aprendeu braile?
Eu já falei com vários deficientes visuais. Uns falam ‘é arretado o braile, aprenda!’, agora outros falam ‘eu já aprendi braile, já desaprendi umas dez vezes’. Eu já tenho meu computador e hoje em dia tudo é feito pelo computador. E, sinceramente, não tenho nenhum interesse em aprender braile. Porque hoje tudo é no computador, tudo é digital. Tudo o que eu quiser escrever eu consigo escrever realmente. E o que eu quero ler, eu não preciso ler em braile, eu boto no computador que é muito mais fácil. Hoje em dia também minha rotina é muito corrida e eu não tenho tempo pra parar e aprender braile. Também se eu tivesse tempo eu não sei se eu aprenderia. Acho que aprenderia mais como um plus pra minha vida.

12.  Quando perdeu a visão teve algum tipo de resignação, revolta? Qual foi sua reação?
Falando um pouco da parte médica, eu tive um papiledema, é como se fosse um inchaço dentro do olho. E aí a maioria dos médicos falava ‘Pedro, tu tá assim porque tu tá com papiledema, quando o papiledema ceder, ou seja, quando desinchar, tu vai voltar a ver normal’. Então eu sempre tive essa esperança. E quando chegou um médico e falou ‘vai ser assim pra o resto da vida’, eu acho que dentro de mim eu já sabia que ia ser assim, mas eu sempre tinha uma esperança de que ia voltar (a enxergar). Quando chegou esse dia eu mais ou menos que já sabia que não ia melhorar. Foi um pouco de baque pra mim, mas no fundo eu acho que já sabia.

13.  Comentários finais:
Infelizmente a discriminação ainda acontece. Comigo um pouco menos porque eu acho que não aparento tanto ter um grau de deficiência como eu tenho. E sempre ando com alguém, ou minha namorada ou meus familiares, então isso aparenta menos. Eu não sei se isso é um mecanismo de defesa que eu tenho. Eu não sei se eu ainda consi... tenho três anos e pouco de deficiência, não sei se ainda me aceitei como deficiente visual. Porque eu não uso bengala, então eu sinceramente ainda tenho que trabalhar muito isso dentro de mim. Ainda é tudo muito recente pra mim. Em um lugar que eu conheço eu ando tudo normal. É engraçado. Até eu acho estranho porque nem eu me acho deficiente visual quando eu conheço um lugar. Tudo é muito diferente comigo, não sou um deficiente visual tradicional. Passo por muitas dificuldades, tipo muita coisa que eu não percebo. A fisionomia de uma pessoa quando eu num lugar, não sei se ela tá achando ruim, se ela não tá. Eu só percebo com a fala das pessoas. A dificuldade existe, ainda é muito grande. A discriminação por parte das pessoas também existe, também é grande. Mas sinceramente eu tive uma experiência boa. As pessoas todas me acolheram muito bem, sempre fui bem recebido nos lugares que eu vou. Quando eu falo que sou deficiente visual, todo mundo fala ‘não, é não’, mas quando vê realmente sabe que é e o tratamento é outro. Acho que tem algumas pessoas que não acolhem muito bem, mas depois que vê que realmente é, aí cai em si e ficam com aquele peso na consciência e vem pedir desculpa. Mas eu levo isso de boa.



*JAWS (Job Access With Speech) é um "screen reader”, um programa de computador para usuários com deficiência visual. Esse software é composto por um sistema que lê as informações dispostas na tela e por um sintetizador de voz para reconhecer comandos executados pelo usuário. Com o auxilio deste software, pessoas com deficiência visual podem usufruir dos recursos de informática e navegação na internet com mais facilidade e sem auxilio de terceiros. O software conta com diversos atalhos de teclado para facilitar a navegação do usuário. Também pode ser usado com um hardware de linhas de braile, para substituir a leitura de tela.

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